Naquelas mesas

Nickolas Ranullo
Revista Subjetiva
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3 min readJun 20, 2021

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Arte: G1

Hoje é um daqueles dias em que escrever o que sinto é também um processo difícil. Acredito que não deveria ser assim — embora saiba bem que por diversas vezes escrever aquilo que se quer é realmente, uma missão difícil. Hoje chove por aqui. É um dia frio. A garoa foi constante. As chuvas mais fortes também caíram durante a tarde. Era muita água. Meu erro talvez tenha sido pegar o celular em algum momento para saber como anda e a quantas anda um mundo que eu, honestamente, tenho cada vez menos vontade de saber em que sentido gira.

Sou formado em jornalismo. A ideia, quando entrei na faculdade, era não ser alguém que contava as grandes histórias da humanidade — afinal de contas, anteriormente, minha vontade era ser um professor de história. Claramente ganhar dinheiro não é uma das minhas pretensões de vida. Eu queria viver aqueles grandes momentos e saber que quem escreveria e narraria aquelas histórias seria eu. Anos se passaram e cá estou eu, formado e vivendo um dos momentos mais sombrios da história. Não era realmente isso que eu tinha em mente lá atrás, mas…

Ao pegar o celular e ver sobre o mundo, vi sobre o catastrófico número que não para de crescer.

Essa é a hora que o cursor fica piscando na tela, esperando pelas próximas palavras. Eu preciso assumir que sempre que penso muito sobre isso, elas fogem de mim. Começo, apago e recomeço as frases e nada parece realmente ser possível de descrever tudo isso que estamos passando.

Mais cedo nesse sábado, dia 19, vi um vídeo da Samanta Schmütz no Saia Justa onde ela comentava sobre a importância de se posicionar. Acredito que talvez tenham sido também suas palavras que me trouxeram até essa página que agora já não está mais tão em branco.

São, hoje, mais de 500 mil mortes. Eu olho esse número e penso nas mesas vazias. Eu imagino o lugar vazio. Quinhentos mil lugares vazios. Eu fico pensando nas histórias que poderiam ter sido. Penso nos pais que não verão seus filhos crescendo. Penso nos avós que não brincarão com seus netos. Penso nos pais que enterraram os filhos que começavam suas vidas. Penso nas esposas e nos maridos que perderam os amores de suas vidas. Penso nas famílias se desmontando um pouquinho mais a cada novo número que sobe em casos e em mortes.

O silêncio da perda deveria ser o barulho que mais ecoa pelo país. Deveria ser o barulho que move aquele que deveria ser um líder — e que escolhe, porém, rir, debochar e ainda diz que nada pode fazer. Realmente, de quem nada quer fazer, nada se pode esperar.

Eu não sei mais o que dizer. Talvez tudo o que escrevi tenha sido apenas para retirar tudo o que penso de dentro da minha cabeça, de dentro do meu peito e, quem sabe, tocar a cabeça e o pensamento de novas pessoas para refletirem sobre tudo o que estamos vivendo. Sobre estarmos normalizando um caos que definitivamente não deveria ser normal. Sobre tratarmos a morte de mais de duas mil pessoas ao dia como se fosse algo comum. Não é. Não deveria ser. Não pode ser normal. Não podemos viver uma vida de contagem de corpos e deixando de contar tantas histórias maravilhosas que mereciam continuar acontecendo. Que mereciam mais horas, mais dias, mais meses, mais anos. Que mereciam ver novamente os olhos de seus pais. Que mereciam receber o beijo de quem amam. Que mereciam receber o abraço dos seus filhos. Que mereciam continuar com a mesa cheia. Que mereciam ver, ao invés do vazio de um lugar de alguém que não vai mais voltar, o seu amor ali sentado. Que mereciam uma vida inteira para ser relembrada e contada.

Talvez seja tudo isso o que se passa pela minha cabeça e pelo meu coração hoje. Isso e o desejo de que amanhã tenhamos algum motivo para sorrir. Se não for amanhã, que não demore a raiar um dia que traga, para nós a chance de realmente abraçar e amar quem desejamos da forma que desejamos e sem nos preocuparmos nos riscos que tudo isso pode trazer. Eu ainda acredito que esse dia irá acontecer. E assim como eu escrevi sobre esse trágico dia, eu também escreverei pelo nosso melhor. Isso é uma promessa.

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Nickolas Ranullo
Revista Subjetiva

"Não digam a minha mãe que sou jornalista, prefiro que continue acreditando que toco piano num bordel".